terça-feira, junho 06, 2006

PAÍS QUE EMPENA




Simões Netto*

“Empenar” tanto pode querer dizer cobrir ou cobrir-se de penas, enfeitar-se, engalanar-se, e assim diz-se “as raparigas empenaram-se garridamente”, “as aves já vão empenando”; como pode significar torcer-se, deformar-se, entortar, caso das expressões “o calor empenou a porta”, “a parede empenou”.
Ambas as acepções ajustam-se metaforicamente a este tempo.
No primeiro caso, Portugal vai enfeitar-se de bandeiras, sonhar com a glória mundial conquistada num campeonato de futebol, vai ser imbatível, o melhor de todos os tempos; adolescente vão extasiar-se com Cristiano Ronaldo, os noticiários pôr à frente das grandes feitos da Ciência o facto de Vítor Baía escrever um conto infantil, ou de Fernando Couto ou Costinha terem passado do clube A para o clube B. A mesma Assembleia da República reajustará os seus trabalhos ao horário dos jogos, o golo da véspera precederá nos noticiários a ninharia da segurança social e da competitividade, haverá caras pintadas com as cores nacionais e cantar-se-ão hinos com muito pulmão em inglês e castelhano comemorando o facto histórico que marcará a glória do género humano. Preparemo-nos para uma festa ininterrupta, para o engalanamento da alma lusitana, que se empena, até provar-se que o resto do mundo não está a dormir e nós sonhámos de mais.
Mas na outra acepção também este nosso país empena. E aqui a coisa é mais longa e, se possível, mais intrigante. Vamos por pequenas reflexões e indícios, extraídos à sorte duma colecção imensa que não caberia neste jornal.
Ao cabo de umas dezenas de anos, não houve nesta pátria uma condenação por corrupção. Contudo, todos se queixam da mesma e conhecem casos em que ela está bem patente. Ou o Direito não funciona ou estamos todos doidos.
Disse o ministro da Justiça que “nenhuma pressão pode influenciar uma decisão do Governo”. Qualquer que seja o a-propósito, pronunciado isto numa democracia, estamos ditos.
O patriotismo vai sendo uma virtude (?) que só tem convincentes manifestações a propósito do futebol. No mais vai passando de moda.
Portugal é um Estado laico que ostenta na bandeira a cruz de Cristo e as cinco chagas. Cruz e chagas que sempre estiveram presentes desde o alvor da nacionalidade. Hoje, o protocolo do Estado coloca a Cruz e as chagas em lugar de honra, no símbolo nacional, mas posterga para a lista dos irrelevantes os que na Terra as representam.
A CP (a dos comboios) assume, a par de algumas novas carruagens catitas, a supressão do transporte de automóveis do Porto a Faro na época de Verão, no que mostra uma aguda compreensão do interesse do turismo. E repare-se que o serviço se encontrava sempre lotado, posto que em flagrante degradação mecânica e higiénica. Por outro lado, a mesma CP oferece agora aos passageiros do Alfa, pelo menos deste, um serviço utilíssimo que demonstra a sua modernidade: massagens, manicura, pedicura, cuidados tendentes ao embelezamento acelerado dos passageiros.
As estações do correio sofreram uma transformação profunda. Em ambiente informatizado, vende-se de tudo, passando por peúgas, chávenas, livros da Margarida Rebelo Pinto e Paulo Coelho, isqueiros e pastilhas elásticas. O pessoal é amável, mas, quanto à prontidão da entrega do correio, caímos numa lotaria: sabe-se quando parte, aposta-se em quando chega. Recebi ontem uma carta que saiu do Algarve há dez dias. Editoras, inebriadas pelo correio azul, remetem convites para cerimónias que acabam por realizar-se antes do correio chegar ao destinatário. O chamado correio normal, que dantes cumpria com rapidez, foi destronado por esse correio azul, mais caro. Ao fim duns tempos, o correio azul começou a fraquejar das pernas e não tardará que surja um outro, digamos que verde ou lilás, que, ainda mais caro, se proponha cumprir a obrigação que era do azul.
Usei há dias um comboio numa viagem curta e pude então constatar como a sociedade portuguesa vem evoluindo no sentido da modernidade antes de se tornar moderna no essencial. Sentaram-se à minha frente dois adolescentes (um de cada sexo, neste caso pareceu-me crível) prodigamente despidos que passaram toda a viagem enroscados em leves gemidos numa empenhada trasfega de salivas. Mereceram a minha simpatia pelo esforço despendido, ainda tão novos, e logo reflecti em que a CP nestes casos, sim, devia providenciar beliches com camas confortáveis e a preço módico. Noutros lugares espalhados pela carruagem animavam-se raparigas exibindo com a máxima generosidade seios e umbigos e – pena! – palavrões do mais refinado calibre. Fiquei ciente.
É proibido inserir publicidade no meio dos noticiários. Mas qual quê! Estamos em Portugal. Continua a ouvir-se, mormente na rádio, enfiar crédito bancário e remédio para as lombrigas no meio do tsunami ou das últimas do inefável presidente do Irão. A lei é alegremente desrespeitada. Neste e em muitíssimos outros casos dedica-se ao direito positivo vigente o mesmo acatamento que nos merece o código de Hamurábi.
As previsões! As sondagens conduzem-nos a dois tipos de previsões: as que agradam e as que desagradam ao Governo. As primeiras, no dizer risonho de qualquer ministro, garantem boas expectativas; as segundas, todos os governantes as desprezam socorrendo-se da frase sacramental: “As previsões valem o que valem”, o que é uma das proposições mais vácuas da mente humana. Como diria Medina Carreira, o fundamental é que se seja franco e claro, pois o povo não é parvo.
O Estado descobre um contribuinte que deve ao fisco, o que se tornou a coisa mais frequente. Mas, porque cobrar a dívida fiscal pode não ser tão simples, vai-se aos certificados de aforro do indivíduo. Quem foge às suas obrigações tributárias não me merece grande respeito, mas isto de o fisco aniquilar os direitos dum credor do Estado, reembolsando-se e poupando ainda juros ao mesmo Estado, parece-me coisa que não soa bem. O Estado obrigou-se perante um credor e, de repente, o mesmo Estado desrespeita uma obrigação sua pelo facto de um contribuinte ter desrespeitado a que lhe competia. Até entre desrespeitadores há primazias.
A indisciplina escolar. Grande parte dos males da nossa economia resulta duma baixa produtividade, que tem relação directa com a capacidade de aprender e obedecer a regras estritas. Mas pedagogos e sociólogos de uma estirpe que tem florescido nestas últimas décadas acham que os males estão na sociedade que produz “bairros problemáticos” e professores incompetentes. O certo é que a maioria esmagadora destes esclarecidos formuladores de proposições nunca ensinaram em qualquer escola mormente nos ensinos básico e secundário. Aí, se os alunos se esmurram entre eles, agridem a professora com valentes sopapos e destroem o mobiliário, logo se invocam os tais “bairros problemáticos” desculpabilizadores de tudo. Afinal os tais bairros também os havia em tempos idos, quando estas tropelias mal se verificavam. Ora a pobre professora não sofre, e com ela toda a instrução nacional, especialmente porque lhe meteram um olho dentro a meio duma tentativa de ensinar aritmética. Ela sofre mais ainda (não se fala já de “bairro problemático”) porque vai padecendo dia a dia, ano após ano, uma erosão contínua da alma ante o desinteresse, mesmo de meninos ricos, que na aula intercomunicam por telemóvel, têm a mente na última dos “Guns’n Roses” e não se sentem no dever de respeitar quem os persegue com o frete da gramática e dos números, quando eles têm o direito de manter a cabeça noutro mundo. A convicção oficial é a de que o ensino há-de ser uma coisa que, acima de tudo, não mace muito o estudante: decorar é uma tirania, o real esforço do jovem é deformador da sua personalidade, o professor deve ser pedagogo, pediatra, psicólogo, versado em primeiros socorros e possuir a fortaleza do santo e o coiro do paquiderme. Vêm estudantes imigrados do Leste e espantam-se.
Congeminou-se agora, em matéria de produtividade do ensino, a escapatória de integrar os pais nos órgãos de gestão das escolas, o que é a melhor forma de aliciar a maioria, que são os pais e os jovens, em desfavor da minoria que são os professores. Abre-se o caminho à chantagem daquela maioria, que deseja acima de tudo que o menino passe da maneira mais fácil, sobrepondo-se a maioria esmagadora dos pais que assim pensam à minoria de uns quantos outros que discordem.
Pega-se num Zé-ninguém, retoca-se-lhe o fácies, passa-se na televisão duas ou três vezes e aí temos uma figura pública que emite opinião e dá autógrafos.
A Justiça age em minguadas condições, e tão eficazes são os meios de a tolher que se o arguido se mune de uma bateria de hábeis advogados pode dormir descansadamente até ao fim de seus dias.
A gestão urbanística e os construtores civis entre eles se avêm com regalo destes últimos, destruição do ambiente e espanto dos munícipes. E a maioria dos partidos, obviamente, toleram no fundo e discordam à superfície.
Eu podia prolongar a lista de considerações sortidas, mas fico-me por aqui, que já cansa. Um país empenado é pior do que uma tábua velha que se pretenda endireitar sem que a quebremos.
*Escritor
Escreve no JANEIRO,

3 comentários:

Nuno Adão disse...

Amigo Vitor, já pensou enviar este artigo para o Excelentíssimo Primeiro Ministro!

Vítor Ramalho disse...

Ele não sabe "ler" este tipo de artigos.

berimbeladaparafuzeta disse...

Andamos...empenados(rsrsrs) a vida inteira!!!