sexta-feira, setembro 28, 2007

BANAL



"…Se a nação mais poderosa do mundo é governada por um cretino, o resto dos governantes não pode fazer outra coisa senão imitá-lo…" - Luís Sepúlveda in "Uma História Suja" (2004)

E tão banais se tornam os actos que definem uma sociedade, tão banal é o mau exemplo que vem de cima, excepto o aparato das aparências, a formalidade do queixume das excelências, que tudo, quase tudo, caminha para a banalização normal.

Já por aqui escrevi que a democracia me parece cada vez mais uma maçã podre, não só no seu âmago escondido, no caroço, alastrando impunemente, à luz do dia, pela indecência generalizada: a obstinação de algumas decisões perante o estado endémico da nação – com a Ota e o TGV à cabeça –, como se da nossa salvação se tratasse; o beneplácito do mundo empresarial sem estofo para entender e respeitar o país além dos seus lucros privados; as mãos quentes da esfrega dos consórcios bancários; uma oposição que veste o casaco da oposição menor para o que chama combate político e se resume a birras sem chama; tudo por junto me diz que a desgraça é grande, imensa, quanto os silêncios – rumamos à deriva, suspensos de um anúncio qualquer sobre uma porra qualquer, menor, sempre.

Oiço cada vez mais as vozes erguerem-se por não sermos a província que falta a Espanha, neste lado do Atlântico. Não o seremos já, miseravelmente, entregues às vicissitudes da nossa tristeza e mau fado?

Citam-me o que os Filipes por aqui deixaram, a forma como fomos segurados na beira do precipício que Alcácer Quibir adensou, e eu lembro-me de Roma e das indicações que os generais levavam a César: “por lá, na Ibéria, informavam-no, há um povo estranho que não sabe nem se deixa governar. Metidos no cativeiro, conseguem engendrar entre eles lutas e morte, em que vez de se unirem perante o invasor”. Continuamos assim, entregues ao vomitado dos telejornais com ministros dentro.

Em Portugal gostamos da esfinge social e psicológica do bom malandro, o marialva romântico que nos calha, o pintas que empresta decoração às pequenas estórias que se contam nos arraiais e nos salões, o Zé do Telhado que faz de Robin Wood e Santo António das moçoilas a um tempo. Por aqui, não é ladrão quem rouba, é ladrão quem é apanhado, e quem se safa e dá um pulo por uma ambição qualquer é um desenrascado que luta pelos seus, valha-nos isso o que valer em camadas coladas de ranço cultural.

Será que Sócrates é engenheiro? Será que o seu teste de inglês técnico foi justo para uma A4 escorreita? Será que depois deste texto assinado vou sentir na pele um processo disciplinar enquanto cidadão, por ter emitido a minha opinião num país livre, de charruas[1] perseguidas? Será que noventa e nove por cento dos portugueses, que não estão inscritos no PS e na sua máquina de produzir empregos, vão acordar um destes próximos dias com resmas de processos disciplinares por se rirem das façanhas de um governo, assessorado pelos brilhantes crânios da propaganda política que povoam todo os gabinetes governamentais, para camuflar o trajecto de um currículo pouco brilhante e disparates novelescos sem fim? Será que antecipei este tempo, quando aqui escrevi sobre a banalidade que pode ser chegar ao cargo de secretário-geral de um partido com vista de São Bento para a cidade ribeirinha que é Lisboa?

Não vou bater mais no ceguinho, cito o povo. Mas deixo aqui a questão que tem faltado. A tese aceite tem a ver com o diploma atribuído por quem de direito, ponto final. O que se passou, nos corredores e nos gabinetes, as facilidades e as mentiras é passado traduzido em direitos adquiridos. Perguntem, por isso, ao senhor empertigado, que nunca esteve inscrito na Ordem dos Engenheiros, qual o seu currículo profissional antes de ter entrado no autocarro do poder. Valeria a pena saber.

Coube ao ministro da Ciência e do Ensino Superior, qual funcionário de secretaria dar-nos explicações sobre o famoso diploma, que não lembram ao diabo. Na sequência cronológica (posso dizer isto, não posso?), foi retirada à Universidade Independente o reconhecimento de utilidade pública. Só agora, depois de tantos e bons serviços prestados aos rapazes do poder?

Agora que o nosso engenheiro Sócrates vai presidir aos destinos (?) da Europa que simula união, preparem-se para a sua entronização, esperem o laudatório disponível para consumo mediático, o sorriso banal ao lado dos chanceleres europeus que as agências se encarregarão de divulgar para a posteridade. Cuidem-se, depois de ontem, no debate mensal na AR, ter sido pedido no meio da crispação habitual, tento na língua e mãos quedas à oposição – há quem lhe chame consenso.

Iremos ficar mais europeus depois destes seis meses de simulacro, com mais saúde, mais justiça, mais dinheiro nos bolsos? Não, mas vamos fazer de conta que somos tão bons como os melhores e, como noutros tempos cinzentos e sem liberdade, iremos estar à beira dos acontecimentos como mirones profissionais que nos ensinaram a ser, de bandeirinhas em punho, ufanos por coisa nenhuma. Espero que os sindicatos, apesar do verão e das férias, saibam estar à altura do seu vínculo histórico. Mas os tempos são outros e até as greves gerais, por aqui (estava eu em França), são repartidas.

A competência dos eleitos não é fiscalizada e os seus imensos e cândidos disparates não são travados por nenhuma estrutura do chamado poder democrático, neste sistema que nos cabe – malefícios de uma maioria instalada pelo voto avulso dos que ainda votam.

Depois dos camelos – faço parte dos autóctones – ao sul do Tejo e de um ministro das Obras Públicas de disparates sem controlo, a Ota anda de opinião em opinião, balouçando ao sabor dos interesses dos lobbies esfomeados pelo dinheiro que vem de Bruxelas e que o povo português há-de soltar dos seus impostos (os maravilhosos estádios de futebol às moscas, que tanto prestígio nos deram, arrasam os orçamentos dos municípios comprometidos, conduzidos pela visão de um efémero ministro do desporto, de seu nome Sócrates) Repito-me: quando eles falam em progresso e futuro, temos o presente entalado.

Apetecia-me por tudo isto voltar a citar Eça de Queirós e os maneirismos saloios que nos acompanham pelos séculos. Sorrio com cinismo e recordo e proponho um texto de Guerra Junqueiro, que tem andado por aí a rolar na net, incluso em “Pátria” (1896).

Regressando à epopeia que a Otas nos vai trazer, um remake já se sente da saga descobridora quinhentista, vejo que a estratégia do governo se baseia em deixar todos a falar até os opostos se esvaírem na arena. Entretanto, lá para os lados de Alenquer, na A1, as obras de viadutos para todos os lados estão concluídas, a lembrar que o trabalho está a ser feito para os compromissos estabelecidos.

Ridícula é a guerra aberta entre presidentes de câmara que puxam o tapete do futuro aeroporto para os seus municípios, aduzindo razões e conselhos. A história do progresso que se vende aos eleitores submete tudo e todos os interesses.

António Costa foi promovido a candidato a próximo presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Provavelmente o mais lúcido governante desta administração, competente e comedido a um tempo, está fora da fotografia governamental – há sombras que incomodam, sabe-se.

Chegado à campanha, talvez com a pedra no sapato de ter há pouco despido a casaca de outro poder, banalizou-se com uma eloquente tirada sobre a estapafúrdia colocação do aeroporto de Lisboa na Baixa ou em Monsanto. Então António, será da proximidade com o Lino das Obras? Nisto, João Soares, tem sido taxativo: Lisboa, a capital, não pode perder o seu aeroporto.

A mim, que vejo e sofro obras na Portela em contínuo há mais de duas décadas, não me agrada ver gastar o dinheiro que não temos, satisfazendo os interesses das corporações de empresários da teta do Estado, numa imensa terraplanagem das margens inundáveis do Tejo. A hipótese Portela mais um agrada-me, adapta-se à nossa condição financeira.

Não acredito nesse crescimento de passageiros prometido para os próximos anos – só se for em emigrantes que voam em companhias de baixo custo, a caminho de outras paragens. Basta uma nova ameaça terrorista, um atentado qualquer, e o receio instala-se à volta do globo. É por isso bom incluir esta componente nos estudos feitos, sem foguetes, sem frenesim, sem folclore.

Um aviso: os aeroportos só ficam dentro das cidades quando os autarcas e os especuladores se entendem para urbanizar, construir e somar taxas municipais, um desenvolvimento exemplar à beira dos rugidos das turbinas e da chiadeira dos travões dos jactos. Ao que parece, o povo, que segue os conselhos das imobiliárias, gosta.

Duas banalidades a culminarem este jejum de escrita e intervenção cívica.

Sobre o Allgarve, que me custa a levar a sério, acreditem, só me cabe dizer que está all parvo no país em que vivo, alimentando as banalidades em que soçobram os noticiários de referência da paróquia. E já agora: porque não Portugall?

É modernaço, dá para tudo e todos os disparates que o povo sanciona no sossego da espera, desde essa manhã de nevoeiro histórico.

Leio uma local do Diário Digital de hoje e pergunto-me se estou esquecido no tempo, revivendo o primeiro de Abril. Depois de uma segunda leitura e alguma pesquisa, confirmo a tirada do ministro da saúde mais sorridente deste governo: se os remédios estão fora de prazo podemos dá-los aos pobres.

Por hoje, nada mais tenho para vos dizer.

[1] Fernando Charrua é o nome do professor que está na origem da boutade política mais ridícula de que há memória.
António Manuel Ribeiro
Setúbal na Rede, 28 de Junho de 2007

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