quarta-feira, julho 05, 2006

Um Olhar Pelo Concelho


FRANCISCO ANTUNES

Bom dia!...
Eu sou o Rio Alva, e hoje queria conversar convosco, coisa que há muito tempo tenho andado a pensar.
Podem aturar-me?...
…É que muitos de vós passam por mim, olham, mas verdadeiramente não me conhecem.
Sou muito, muito antigo, sou do tempo da criação do mundo, mas não sou velho…lá isso não!
O meu ilustre biógrafo, o Professor Doutor Luciano Lourenço, diz que a minha nascença deve ser a da Ribeira da Fervença ou no Corgo das Mós, lá para cima, para as bandas do Vale do Rossim; a dúvida resulta de, nuns anos é determinado lagoacho que me dá mais água, noutros anos são lagoachos situados mais acima, mas tudo se passa a cerca de 1650 metros de altitude. O meu compadre, o rio Alvôco, é mais velho que eu e nasce mais alto, a 1950 metros de altitude.
A minha mãe é a Serra da Estrela e o meu pai é…o Inverno, que todos os anos "cobre" a minha mãe!
Sabem?... Há milhões de anos, eu corria para o leito do Cobral, pois na Senhora do Desterro, inflectia para Poente e lá ia eu pelo Purgatório (bairro de S. Romão) abaixo. Nesse tempo era a ribeira da Caniça, que vem da Lagoa Comprida, que acalentava o meu leito. Então, veio um gigantesco "tremedoiro" e abriu-se aquela fenda que desce quase a pique, da Senhora do Desterro até Vila Cova À Coelheira. Se o Cobral é rio, a mim o deve, e em memória desse tempo ainda dou água com fartura para os lindos campos da Samassa.
…O meu nome? Olhem…, curiosamente, nada tem a ver com a palavra "alvus" (branco, transparente), mas sim, de "alveus" – alvéolo – estreito.
Embora cheio de rugas (os montes das minhas margens) e com manchas na pele (serranias negras devastadas pelos incêndios) que tanto sofrimento me dão, sempre tive notável vigor e frescura de memória.
Lembro-me com nostalgia…dos povos que habitaram as minhas margens e em mim se recuperavam das durezas da vida. Assisti às gravuras rupestres da Vide, conheci os Adoradores da Lua, na Serra do Açor, recordo-me dos Iberos, dos Pésuros – uns "tipos" que nunca se lavavam –, lembro-me da dignidade dos Celtas, da ocupação Romana, dos povos Germânicos: Formarigo, Gondufo, Sandomil…são palavras dessa gente!
Dei água aos Mouros durante cerca de quatrocentos anos e recordo bem os exercícios do Almansor, a atravessarem-me, a caminho da destruição de Santiago de Compostela!!! Depois vieram os Leoneses à conquista de Seia, depois os cristãos, que me deram um certo descanso. Bem o merecia, não acham?...
Mas agora, anda por aí uma "tropa fandanga" que me dá cabo da saúde: os incendiários. Queimaram-me a pele, tenho sérias dificuldades em respirar, a erosão turva-me as águas, entope-me os rins e quem mais sofre são os campos do Baixo Mondego…".
"Por aqui passou a minha avó" e as cheias deitam tudo abaixo… e ainda não vos falei da maldita praga de gafanhotos, perdão, da praga dos vândalos das motas…abrem ravinas nos estradões e quando chove, são mais regos a arrastar terra, ruídos, óleos, gazes, borracha, amianto…é um louvar a Deus…
Lembro-vos que um litro de óleo pode poluir um milhão de litros de água! E os esgotos de tanta, tanta gente que habita nas minhas margens!!!
Vocês, homens, muito mal me tratam!!!
Dizia Einstein que no Universo há duas coisas que são imensas, que não se podem medir: o infinito…e a estupidez humana!!!
E lembrar-me que eu vos matava a fome e o frio, fazia girar centos de moinhos, azenhas, noras, lagares de azeite, pisões… em Alvoco da Serra, Loriga, Valezim. S. Romão, Vila Cova, trepidavam dezenas de teares. Centrais eléctricas eram sete…que riqueza! Presenteava-vos com toneladas de saborosos peixes: trutas, barbos, bogas, ruivacas, enguias…onde havia melhor??? Agora até as "sanguessugas" acabaram…
Frutas, legumes, linho, trigo, milho, viçosas pastagens, tudo…tudo isto eu dava aos homens. Ouro, prata, estanho… os sacanas dos romanos esgadanharam-me as entranhas, tudo levaram… nas minhas margens havia fartura de caça grossa, que o diga a memória do senhor dom Pedro Primeiro: ursos, cervos, javalis, lobos, cabras… que riqueza, Santo Deus!!!
Nas minhas margens refugiaram-se ladrões e homiziados, liberais e miguelistas, monárquicos e republicanos, democráticos e salazaristas… desde muito cedo inspirei trovadores e poetas, homens de letras e pintores: Fernão Rodrigues Redondo, o trovador de Arganil, Gil Vicente conhecia-me, o senhor Braz Garcia era meu padrinho, Jaime Cortesão, Vasco de Campos, Nunes Pereira, Ribeiro de Vasconcelos, Roque Gameiro, José Contente, Fernandes Nogueira, Nogueira Gonçalves…até o Torga me visitava. Tanta, tanta gente ilustre se refrescava nas minhas margens e vocês, homens, a dar-me cabo da saúde, tentaram capar-me (salvo seja) para me tirarem o vigor com barragens e açudes; nas Fronhas até me desviaram a "via" para a Aguieira, da Lagoa até Vila Cova entubaram-me as goelas, nem sequer vejo a luz do dia. Para cúmulo…até "maricas" vieram fazer ninho nas minhas terras!
Não sou vingativo, mas tenho que vos dar sinais do meu desgosto. Peguem na circunspecta Enciclopédia Luso Brasileira, letra T e vejam "tesão" = rede de apanhar trutas usada no Rio Alva. Zás, acabei com a rede. As belas castinceiras que davam boa verga para cestaria…traz, acabei com elas. Eu que tanto gostava de ouvir as raparigas a cantar nas regas, na sacha do milho, tal qual Vasco de Campos cantou há 70 anos:
Oh camponesas formosas
Do Rio Alva tão lindo
Há a frescura das rosas
Em vossos lábios sorrindo!...
Hoje, meus amigos, nem camponesas, nem rosas, nem…flor de laranjeira…
Olhem, antigamente, uma mulher tinha 8, 10 (e mais) filhos; hoje, uma mulher tem: um vírgula quatro filhos… valha-nos a Senhora do Cabeço… chegaremos ao tempo em que os homens não sabem fazer filhos…fazem vírgulas!!!
Vivo triste e magoado, mas ainda me restam forças para vos oferecer esta sublime quadra de Nunes Pereira – "Ode ao moinho":
Bate-me a água nas penas
Que tenho no coração
A água bate-me e foge…
As penas nunca se vão!...
Sempre vosso amigo,

Rio Alva

3 comentários:

Anónimo disse...

ó chico estás velho e encarquilhado

Vítor Ramalho disse...

De vez em quando lá vem um comentário imbecil.

Anónimo disse...

É bom recordar às novas gerações, que aquilo que hoje usufruem e desperdiçam, deve ser tratado com parcimónia e veneração. A desgraçada cultura do consome, usa e deita fora e quem vier atrás que feche a porta, é fruto de 30 anos de péssima educação, sem regras, sem valores e sem respeito pelos outros, pela natureza, mas apenas pelo seu umbigo.
É bom recuperar estas prosas e divulgá-las mais vezes, para que cada vez mais nos possamos orgulhar do passado e ombrear com outros povos que fizeram da cultura e da educação um dos seus principais valores.