sábado, abril 05, 2008
Mate 100 turcos, e descanse...
Lembrei-me, esta semana, daquela velha história de uma mãe judia, separando-se do filho convocado para servir o exército do czar contra os turcos. "Não exija demais de você mesmo", aconselhava ao filho. "Mate um turco, e descanse. Mate outro turco, e descanse outra vez..."
"Mas, mãe", diz o filho, "E se o turco me matar?"
"Matar-te?", grita ela, indignada. "Por quê? Que mal lhe fizeste?!"
Não é piada (e esta não é semana para piadas). Aí está uma lição de psicologia. Lembrei-me dela, ao ler que Ehud Olmert declarou que o que mais o enfureceu foi a explosão de alegria em Gaza, depois do ataque em Jerusalém, no qual foram mortos oito estudantes yeshiva.
Antes disto, na semana passada, o exército de Israel matara 120 palestinianos na Faixa de Gaza, metade dos quais civis, além de dúzias de crianças. Não foi "mate um turco, e descanse". Foi "mate 120 turcos, e descanse". Isto, Olmert não entende.
A GUERRA DOS CINCO DIAS em Gaza (como disse o líder do Hamas) foi mais um curto capítulo da luta entre israelitas e palestinianos. Este monstro sanguinário nunca está satisfeito. Quanto mais come, mais sente fome.
Este capítulo começou com o "assassinato selectivo" de cinco altos militantes, dentro da Faixa de Gaza. A "resposta" foi uma chuva de foguetes e, desta vez, não só sobre Sderot, mas também sobre Ashkelon e Netivot. A "resposta" à "resposta" foi a incursão pelo exército de Israel e a matança.
O objectivo declarado foi, como sempre, fazer parar os foguetes. O meio: matar o maior número possível de palestinianos, para dar-lhes uma lição. A decisão baseou-se num tradicional conceito vigente entre os israelitas: mate civis, mate e mate, até que os líderes caiam. Cem vezes Israel já tentou esta "solução"; cem vezes fracassou.
Como se faltasse algum exemplo da loucura dos que divulgam este conceito, lá estava, na televisão, o ex-general Matan Vilnai, para "declarar" que os palestinianos "trazem a Shoah para eles mesmos".
A palavra Shoah, em hebraico, só significa uma coisa, em todo o mundo, e só uma: é o holocausto dos judeus, pelos nazis. A frase de Vilnai incendiou o mundo árabe e provocou uma onda de choque. Também eu recebi dúzias de telefonemas e mensagens de e-mail, de todo o mundo. Como convencer as pessoas de que, no hebraico coloquial, na fala diária, Shoah significa "apenas" uma catástrofe, um grande desastre, e que o General Vilnai, que já foi candidato a presidente, nunca foi o mais inteligente dos homens?
Há alguns anos, o presidente Bush convocou uma "Cruzada" contra o terrorismo. Não sabia que, para centenas de milhões de árabes, a palavra "cruzada" evoca um dos maiores crimes jamais perpetrados na história humana, o horrendo massacre de muçulmanos (e judeus) pelos primeiros "cruzados", nas vielas de Jerusalém. Um concurso de inteligência, entre Bush e Vilnai, provavelmente, acabava empatado.
VILNAI NÃO ENTENDE o que significa a palavra Shoah para os diferentes dele; e Olmert não entende por que houve júbilo em Gaza depois do ataque à escola yeshiva, em Jerusalém. Sábios como estes dois dirigem o Estado, o governo e o exército. Sábios como estes dois controlam a opinião pública, porque controlam os média. O que há de comum entre todos estes sábios: a mesma insensibilidade, a mesma cegueira, que os impede de ver o que sentem os não-judeus, os não-israelitas. Desta cegueira nasce a incapacidade para entender a psicologia do outro lado; e, depois, tampouco entendem as consequências das suas palavras e actos.
A mesma cegueira explica a incapacidade para entender por que o Hamas se declarou vitorioso na Guerra dos Cinco Dias. Que vitória? Feitas as contas, morreram só dois soldados e um civil israelita, e foram mortos 120 palestinianos, combatentes e civis.
Mas a batalha travou-se entre um dos mais poderosos exércitos do mundo, equipado com o armamento mais moderno que há no planeta, contra umas poucas centenas de combatentes de milícias, com armamento primitivo. A retirada - e este tipo de combate sempre termina em retirada - sempre é uma vitória para o lado mais fraco. Aconteceu na Segunda Guerra do Líbano e aconteceu na Guerra de Gaza.
(Binyamin Netanyahu é autor de uma das "declarações" mais estúpidas da semana; exigiu que o exército de Israel "esqueça os movimentos de atrito e decida o combate". Numa luta como esta, não há como decidir coisa alguma.)
O resultado real deste tipo de operação não se manifesta em números, em quantidades: tantos mortos, tantos feridos, tais e tais prédios destruídos. O resultado, aí, só tem expressão psicológica, resultados que não podem ser medidos e, portanto, são incompreensíveis para cabeças de generais: quanto ódio se acrescentou ao ódio existente, quantos novos homens-bomba surgiram, quantos mais juraram vingança e converteram-se em bombas vivas - como o jovem de Jerusalém que acordou uma manhã, esta semana, arranjou uma arma, andou até a escola Mercaz Harav yeshiva, aquele ninho de onde nascem todas as colónias e "assentamentos", e matou a maior quantidade de israelitas que conseguiu.
Agora, as lideranças políticas e militares de Israel reúnem-se para discutir o que fazer, como "responder". Não tiveram nem terão qualquer ideia nova, porque políticos e generais são incompetentes para gerar ideias novas. Só sabem repetir as ideias de sempre, o que já fizeram centenas de vezes, e fracassaram centenas de vezes e fracassarão sempre.
O PRIMEIRO PASSO para sair deste círculo de loucura é começar a questionar os conceitos e métodos que Israel tem usado nos últimos 60 anos. E recomeçar a pensar, do começo, desde o início.
Isto sempre é muito difícil. E é ainda mais difícil para Israel, porque as lideranças em Israel não têm liberdade para pensar - o pensamento, em Israel, está sempre amarrado ao que pensem os líderes norte-americanos.
Esta semana, foi publicado um documento chocante: o artigo de David Rose na Vanity Fair. Ali é contado como, nos últimos anos, funcionários dos EUA têm ditado cada passo de lideranças palestinianas, nos mínimos detalhes. Embora o artigo não toque nas relações EUA-Israel (uma omissão que, de fato, é surpreendente) sabe-se, mesmo que não se leia, que a acção norte-americana, nos mínimos detalhes, é coordenada com o governo de Israel.
Por que chocante? Em termos gerais, não há novidades, no artigo: (a) os norte-americanos mandaram que Mahmoud Abbas mantivesse as eleições parlamentares, para que Bush aparecesse como aquele que levou a democracia ao Oriente Médio. (b) O Hamas foi eleito - o que não se esperava que acontecesse. (c) Os americanos impuseram um boicote aos palestinianos, para ‘desconstruir' o resultado das eleições. (d) Abbas afastou-se um passo da política que lhe foi ordenada, sob auspícios (e pressão) da Arábia Saudita; e fez um acordo como o Hamas. (e) Os americanos cortaram-lhe as asas e obrigaram Abbas a entregar todos os serviços de segurança a Muhammad Dahlan, escolhido pelos norte-americanos para o papel de homem-forte na Palestina. (f) Os americanos deram armas e dinheiro a Dahlan, treinaram os seus homens e ordenaram que criasse um golpe militar contra o Hamas na Faixa de Gaza. (g) O governo eleito do Hamas abortou o movimento e respondeu, o próprio Hamas, com um contra-golpe armado.
Até aí não há novidades. Tudo isto já era sabido. A novidade é que esta mistura de noticiário, boatos e apostas inteligentes apareça condensada em relatório bem informado, formulado a partir de documentos oficiais dos EUA. É prova da abissal ignorância dos EUA, só comparável à abissal ignorância de Israel, quanto aos processos internos da Palestina.
George Bush, Condoleezza Rice, o neoconservador sionista Elliott Abrams e os generais norte-americanos, que nada sabem sobre coisa alguma, competem com Ehud Olmert, Tzipi Livni, Ehud Barak e com os generais israelitas, que sabem, sobre a Palestina, o que caiba do fundo à ponta dos canhões de seus tanques.
Os norte-americanos, enquanto isto, já destruíram Dahlan porque o expuseram como seu agente, na linha do "é um filho-de-puta, mas é o nosso filho-de-puta". Esta semana, além do mais, Condoleezza detonou um golpe mortal contra Abbas. Ele anunciou, de manhã cedo, que suspendia as negociações (tempo perdido) de paz com Israel - o mínimo que podia fazer, depois das atrocidades que o exército de Israel cometeu em Gaza. Rice, que soube disto quando tomava o pequeno-almoço na estimulante companhia de Livni, imediatamente convocou Abbas e ordenou que desdissesse o que acabava de dizer. Abbas obedeceu e expôs-se, ele mesmo, nu em pêlo, ao seu próprio povo.
A LÓGICA não foi dada ao povo de Israel no Monte Sinai. Mas, sim, foi dada no Monte Olimpo, aos antigos gregos. Apesar desta dificuldade local, tentemos aplicar aqui, alguma lógica.
O que o governo de Israel está a tentar conseguir, em Gaza? Quer derrubar o Hamas (e, marginalmente, também quer que parem os foguetes e morteiros contra Israel).
Israel já tentou obter o que quer mediante um bloqueio total contra a população palestiniana, na esperança de que, assim, a população levantar-se-ia contra o Hamas. O plano falhou. O "plano B" seria reocupar toda a Faixa de Gaza. Mas isto vai custar um alto preço em vidas de soldados, preço mais alto, talvez, do que a opinião pública em Israel esteja disposta a pagar. Além disto, de nada adiantará, porque o Hamas vai reaparecer no momento em que as tropas de Israel se retirarem. (Mao Tse Tung ensinava, como primeira lição na guerra de guerrilhas: "Se o inimigo avança, retrocede. Se o inimigo retrocede, avança.")
O único resultado da Guerra dos Cinco Dias foi o fortalecimento do Hamas e o aumento do apoio que recebe do povo palestino - não só na Faixa de Gaza, mas na Cisjordânia e também em Jerusalém. O Hamas tinha, sim, o que celebrar, naquela festa da vitória. Os foguetes não pararam. E aumentaram a capacidade de fogo e o alcance.
Mas suponhamos que a política de Israel tivesse dado certo e que o Hamas tivesse sido derrotado. E então? Abbas e Dahlan não podem voltar sobre a cabine dos tanques israelitas, como sublocatários da ocupação. Nenhuma empresa de seguros de vida vai aceitá-los como segurados. E, se não voltarem, será o caos, do qual vão emergir forças tão extremistas que, hoje, ainda nem as podemos imaginar.
Conclusão: o Hamas está lá. Não pode ser ignorado. Temos de construir um cessar-fogo com o Hamas. Não a partir de uma oferta ridícula, do tipo "se eles pararem primeiro, nós paramos depois". Cessar-fogo, como o tango, precisa de dois. É preciso haver um acordo prévio e detalhado que inclua a cessação de todas as hostilidades, armadas e outras, em todos os territórios.
Nenhum cessar-fogo será efectivo se não houver negociações, conversações, que têm de começar logo, e que levem a um armistício de longo prazo (a hudna) e à paz. Estas negociações não podem acontecer com a Fatah, e sem o Hamas; nem com o Hamas, e sem a Fatah. Portanto, é preciso construir um governo palestiniano em que se reúnam os dois movimentos. É preciso convocar personalidades que gozam da confiança de todo o povo palestino; Marwan Barghouti, por exemplo.
Não há uma única voz, nem entre as lideranças em Israel nem entre as lideranças nos EUA que se atreva a declará-lo abertamente. Mas esta política é precisamente o avesso, o contrário, da política em curso, pensada por EUA-Israel, e que proíbe até que Abbas converse com o Hamas. Portanto, vamos continuar a ver o que temos visto.
Vamos matar 100 turcos, e descansamos. E, vez ou outra, algum turco vai nos matar, alguns de nós.
Por quê, pelo amor de Deus?! Que mal lhes fez Israel?!
* Uri Avnery,85 anos, é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelita).
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